domenica, ottobre 10, 2004

Poema editado

Legendar a conversa dos pássaros ao amanhecer, esticar o arame do violino, acolher o elogio dos defeitos, prender em gaiolas os livros de leitura avoada, trocar mensalmente a terra do rosto, agradecer a quem te cumprimenta por engano, empregar as ervas como escolta das flores, desaparecer na visibilidade, interromper a sesta do vento, conhecer-te na medida em que me ignoro, repetir os erros para decorar os caminhos, afiar a faca na compra para que seja leal na despedida, levantar atrasado com a solidão ao lado, reverenciar o muro que nos permite imaginar uma vida diferente da nossa, escolher as melhores maçãs pelo assédio dos insetos, assobiar estrelas entre os telhados, partir os cabides ao arrumar as malas, avisar das falhas na calçada, seguir quem está perdido, ser a primeira roupa do teu dia, desafiar as cigarras desafinando mais alto, revezar com o pessegueiro a guarda da porta, buscar um confidente fora da consciência, barbear a insônia com a lâmina dos seios, abandonar teu corpo antes da luz depor o peso, morar no clarão exilado, curvar-se no violão como uma violeta cansada, compensar a forte dose da fala com os gestos, imitar a elegância de objetos esquecidos, deixar a música se inventar sozinha, segurar no braço da cerração para atravessar a rua, retribuir o aceno das sobrancelhas, presenciar da janela a palestra da chuva, espreguiçar a camisa dormida de espuma, eleger tristezas para concorrer com as tuas, engolir de volta as palavras que te agrediram, medir a altura do poço com uma moeda, entender que meus livros são parecidos comigo (demoram a fazer amigos), verificar o pulso da madeira, achar no pesadelo um quarto para dormir, arder como um musgo na soleira da porta, descer o fecho do vestido e vestir o quarto, combinar encontros e desencontrar-se consigo no meio do trajeto, desistir de compor o diário porque não existe segredo quando escrito, anotar na agenda as reuniões que não quero ir, apiedar-se da vocação fúnebre do guarda-chuva, falir na memória preservando a imaginação, acautelar-se das paredes velhas, o cimento armado, carregar o sobretudo como uma garrafa vazia, comemorar o que desconhecemos um do outro.

Novíssimo Testamento - Fabrício Carpinejar